Reflexão Quaresmal de 2021 da Comissão Nacional Justiça e Paz | Diocese Bragança-Miranda

«Vamos subir a Jerusalém» (Mt 20, 18)

Eis-nos de novo na Quaresma e o Papa Francisco convida-nos a juntarmo-nos a Jesus que nos diz: «Vamos subir a Jerusalém...».

A Quaresma é sempre um tempo especial, mas esta apresenta-se com uma nova fisionomia, apresenta-se carregada de medos num caminho armadilhado e por isso a tentação de desistir da caminhada é grande. Na sua Mensagem, no entanto, o Papa diz-nos que é um «tempo para renovar fé, esperança e caridade». Subir a Jerusalém é ir ao encontro da Páscoa.

Subir a Jerusalém é um caminho a percorrer e podemos fazê-lo juntos no desafio da comunhão e assim «recebemos com o coração aberto o amor de Deus que nos transforma em irmãos e irmãs em Cristo».

O trajeto do tempo presente, o troço que nos propomos calcorrear, tem vários encontros à nossa espera. É uma subida com «a luz da Ressurreição que anima os sentimentos, atitudes e opções» e se orienta pelos marcos da fé, esperança e caridade.

 

1. A fé chama-nos a acolher a Verdade e a tornar-nos suas testemunhas diante de Deus e de todos os nossos irmãos e irmãs

 

«A fé não resolve a nossa sede.

Muitas vezes intensifica-a, destapa-a e,

em algumas circunstâncias,

torna-a até mais dramática.

Mas a fé ajuda-nos a ver na sede

Uma forma de caminho e de oração».

 

Tolentino Mendonça, in Elogio da Sede

 

Neste tempo de Quaresma, acolher e viver a Verdade manifestada em Cristo leva-nos a acreditar no caminho. É neste caminho que «o jejum, vivido como experiência de privação» por um valor maior, «leva, a quem o pratica com simplicidade de coração, a redescobrir o dom de Deus e a compreender a nossa realidade de criaturas que, feitas à sua imagem e semelhança, n'Ele encontram plena realização». O amor é um movimento que centra a minha atenção no outro, considerando-o como um só comigo mesmo.

É o tempo de «acolher e viver a verdade», de dar espaço, fazer o vazio para acolher.

E não nos falta quem acolher. Na nossa fragilidade de criaturas, somos desafiados a acolher a vida com as suas fragilidades, sem pretensões a super-heróis. Mas este processo faz parte do caminho, desta subida que não se satisfaz com um verniz espiritual. Exige que se viva uma espiritualidade com coerência e realismo. E não falta onde meter as mãos: quantas realidades sociais carecem de ações que promovam uma efetiva subsidiariedade que ultrapasse o domínio despótico dos mercados de capitais e dos lucros que olha com desdém para os trabalhadores que vivem na incerteza e na penúria, em que a economia não é capaz de dar o devido valor à pessoa! É um desafio nesta caminhada para, com consciência, dar maior atenção e valorização à economia social, para que esta não seja mero adereço para momentos de aflição extrema.

É tempo de «acolher e viver a verdade» diante dos idosos e inverter o paradigma social. Neste tempo favorável somos chamados a acolher cada idoso como um presente de Deus que nesta pandemia eleva um grito silencioso, mas angustiante, questiona e exige uma outra resposta, pois não nos falta engenho. Com gratidão pela vida, precisamos de desenhar uma nova proximidade, onde a institucionalização não pode ser resposta única nem primeira.

«A eliminação dos idosos da vida da família e da sociedade representa a expressão de um processo perverso em que já não existe a gratuidade, a generosidade, aquela riqueza de sentimentos que fazem com que a vida não seja apenas um dar e receber... Eliminar os idosos é uma maldição que muitas vezes esta nossa sociedade se autoinflige»[1].

Por isso, a atenção materna da Igreja que recentemente nos alerta: «Existe, antes de tudo, o dever de criar as melhores condições para que os idosos possam viver esta fase particular da vida, tanto quanto possível, no seu ambiente familiar, com as amizades habituais», diz o documento recentemente publicado pela Academia Pontifícia para a Vida[2].

É preciso tempo de «acolher e viver a verdade», para acolher a solidão e o isolamento, convidando todos a ver mais além a verdadeira provocação da vida.

É preciso tempo, um tempo onde a fé da criatura mergulha na relação íntima com o seu Criador. «E o Senhor está ali, ... dar-nos-á a palavra certa, o conselho para ir em frente sem aquele sumo amargo do negativo. Porque a oração, usando uma palavra profana, é sempre positiva. Sempre! Leva-te em frente»[3] - são palavras do Papa Francisco.

 

2. A esperança como «água viva», que nos permite continuar o nosso caminho 

«Tudo à nossa volta parece agitado

por um tremor que nos faz inseguros, pessimistas,

à espera de um grande sismo;

e é enorme a tentação de exclamar

“que não há onde firmar pé”.

Hoje quero ver para além do nevoeiro ou das trevas,

olhando para a nascente, onde a esperança está limpa,

sem os afluentes poluídos do caminho».

 

João Aguiar Campos, in Circunstâncias

 

É o tempo da «esperança que não desilude». A subida a Jerusalém carrega o anúncio da paixão e morte de Jesus, mas é um caminho que desemboca na Ressurreição.

A vida no mundo carrega preocupações e canseiras. Basta olharmos para a educação e a saúde. Sentimos entre as mãos fragilidades e incertezas.

Mas é agarrados a esta «esperança que não desilude» que podemos com desprendimento olhar a educação e perceber que é nela que se joga o futuro de um povo e que ela não pode ser reduzida a jogos de poder, a números semelhantes a bolas de sabão, a querer resultados sem olhar a meios.

Continuamos a perceber guerras por quinhões educativos, por querer fazer da educação um instrumento onde os experimentalismos se expandem como cogumelos em inverno chuvoso.

Mais do que parece, não há verdadeiro empenho educativo. São necessários horizontes de sonho e capacidade para fazer germinar processos educativos que verdadeiramente promovam a capacidade de enfrentar o ‘novo’ e olhar para as inevitáveis dificuldades da vida como possibilidades de melhor e mais além.

«Falar de esperança – escreve o Papa na sua mensagem – no contexto de preocupação em que vivemos atualmente onde tudo parece frágil e incerto, poderia parecer uma provocação».

Mas estamos no tempo da esperança e a vida não está num ecrã.

E com o olhar de esperança também olhamos para a saúde com preocupação. Não nos podemos resignar aos efeitos mágicos diariamente exibidos de números, gráficos e imagens que parecem vindas de um qualquer filme de ficção. A saúde são pessoas. A saúde é Covid-19, mas é cancro e tantas outras doenças que apoquentam muitas pessoas, principalmente as mais pobres.

E depois não nos podemos escandalizar e rasgar as vestes diante do despontar de fenómenos de timbre populista.

Neste tempo da «esperança que não desilude» espera-se a capacidade de tocar as feridas para ajudar a sarar e não para provocar a dor, espera-se encontrar soluções efetivas e não placebos que adiem para um amanhã incerto. É que a frescura da esperança «ilumina desafios e opções da nossa missão».

Este é o tempo da «esperança que não desilude» olhando também para as feridas da criação. Somos convocados a cuidar das preciosidades desta Terra que se deleita com o mar e as serras, as florestas e os rios, as planuras e todas as intervenções antrópicas... Precisamos da consciência dos limites da finitude dos recursos, das respostas imperfeitas que a tecnologia oferece, dos limites que fazem parte intrínseca da criação e, ao mesmo tempo, são desafios à superação.

Neste caminho de subida para Jerusalém, precisamos de companheiros de viagem para este itinerário de amor, aquele Amor que é timbre da criação, e podermos ser «testemunhas do tempo novo em que Deus renova todas as coisas», diz o Papa.

E a Ressurreição é o maior sinal da esperança. 

 

3. A caridade, vivida seguindo as pegadas de Cristo na atenção e compaixão por cada pessoa, é a mais alta expressão da nossa fé e da nossa esperança

«Para curar as feridas profundas das relações primárias da nossa vida (“a fraternidade”),

temos uma necessidade vital do tempo.

Não nos reconciliamos verdadeiramente se não permitirmos

que a dor-amor entre até à medula da relação doente,

seja absorvida e lentamente a cure.

São sobretudo necessárias ações que digam,

com a linguagem do comportamento, que queremos realmente recomeçar».

 

Luigino Bruni, in Redescobrir a Árvores da Vida

 

«A caridade... é a mais alta expressão da nossa fé e da nossa esperança», não é assistencialismo, mas é um dom que gera fraternidade. Este caminho chama-se fraternidade e carrega um amor que tem mangas arregaçadas para agir.

Assim, cada um pode ser aquela retaguarda que multiplica os locais dos milagres de fraternidade, nas escolas, nos hospitais, nos lares, nas famílias...

E as famílias, precisamente pelo amor recíproco, podem merecer a presença de Jesus, tornando-se Igreja doméstica, cenáculo e escola de humanidade. Não foi assim no início do cristianismo? Neste caminho para a Páscoa podemos multiplicar os pontos de luz acolhendo Jesus e, como a semente que morre, assim germinará uma nova primavera para a Igreja e para a Humanidade.

                É a expressão da caridade que pode dar ao progresso científico o sentido do verdadeiro serviço à vida sem colocar condições.

         A fraternidade não pode reduzir-se a um simples exercício de palavras, ou a um elemento decorativo fazendo companhia à liberdade e à igualdade. É necessária uma humildade desarmante que suja as mãos na história, que na vida quotidiana vive o tempo, é criativa, tem a arte da hospitalidade, é amiga.

 

A mensagem do Papa não se limita a cada um, mas alarga o amor alertando-nos que «a partir do “amor social”, é possível avançar para uma civilização do amor».

É uma subida que pode ser íngreme e causar desânimos, mas desafia à coragem de arriscar e, nesta Quaresma especial, reclama sairmos de nós e ir ao encontro com um telefonema, uma refeição levada à porta daquela pessoa que está só, uma conversa usando as novas tecnologias disponíveis para nos alegrarmos com o bem que não é notícia e partilha as agruras dolorosas entre os escombros da solidão, da doença, do abandono, da miséria, da escuridão da alma, da morte.

Diante dos desafios, não temos limites e fazemos o caminho até ao fim para que ninguém sucumba à tentação de desistir. A beleza da comunhão ajudar-nos-á no aprofundamento dos afetos, na vivência do perdão, na regeneração das relações para sermos coerentes, resilientes e criativos.

A caridade é um dom que bate ao nosso coração.

E a grande dor deste momento presente não é o vírus, mas o isolamento, porque nos tira o timbre trinitário da relação. E a subida a Jerusalém é feita de relações, relação criatura-Criador, relação entre nós e relação com a criação. É que em Jerusalém haverá a Ressurreição com novos Céus e nova Terra.

E se virmos ‘aquele’ brilho dos olhos, então é porque o Paraíso não está longe, mas entre nós.

Comissão Nacional Justiça e Paz

17 de fevereiro de 2021


[1] J.M. Bergoglio, Solo l’amore ci può salvare, LEV, Città del Vaticano 2013, p. 83.

[2] Documento da Academia Pontifícia para a Vida: “A velhice: o nosso futuro. A condição dos idosos depois da pandemia”, 9 de fevereiro de 2021.

[3] Papa Francisco, Audiência Geral, 10 de fevereiro de 2021.