«Fenómeno ou iliteracia digital?» | Opinião de Frei Hermano Filipe | Diocese Bragança-Miranda

Nos últimos dias, a Worldcoin, foi capa de vários jornais em Portugal, mas a atividade da empresa no nosso país e em vários outros países do mundo começou há já vários meses e, provavelmente, não teria sido agora notícia se não tivesse havido a adesão que houve e se a recolha de dados pessoais e biométricos não tivesse sido feita em locais públicos como centros comerciais e estações de comboio onde se chegou a ver enormes filas de espera.

Estima-se que terão sido já mais de 300 mil os portugueses a ceder uma foto da sua íris em troco de uma “World ID”(identidade digital) e de algumas criptomoedas (de forma simplificada, são moedas ou meios de troca descentralizados, com base na tecnologia de blockchain e criptografia).

Parece-me pois, oportuno, relembrar o importantíssimo apelo deixado pelo Papa Francisco na sua mensagem para a celebração do Dia Mundial da Paz, que ocorreu no passado dia 1 de janeiro, mas que, como quase tudo o que diz respeito ao mundo tecnológico e digital, e por causa da elevada iliteracia digital, pode facilmente cair em “saco roto” junto de muitos agentes da pastoral:

«A confidencialidade, a posse dos dados e a propriedade intelectual são outros âmbitos em que as tecnologias em questão [tecnologias digitais] comportam graves riscos, aos quais se vêm juntar outras consequências negativas ligadas a um uso indevido, como a discriminação, a interferência nos processos eleitorais, a formação duma sociedade que vigia e controla as pessoas, a exclusão digital e a exacerbação dum individualismo cada vez mais desligado da coletividade. Todos estes fatores correm o risco de alimentar os conflitos e obstaculizar a paz.» (Cf. n. 3)

É, pois, urgente reconhecer que as inovações tecnológicas, sendo atividades humanas, pensadas, desenvolvidas, experimentadas e orientadas por seres humanos para um determinado fim, não são neutrais, têm uma dimensão ética. É com isso presente que deve ser analisada a atividade da Worldcoin (e de tantas outras empresas como a Google, Apple,Meta, Amazon ou Microsoft, a quem cedemos diariamente dados pessoais).

Ora, sabe-se que até ao momento cerca de 3% da população portuguesa já cedeu dados pessoais à Worldcoin a troco de 10 tokens WLD (ao câmbio atual, cerca de 70€). Estima-se que, a este ritmo, se possa chegar aos 20% da população até ao final do ano, isto se, do ponto de vista legal, nada for feito para o impedir. Mas aquilo que parece ser um “fenómeno”, sobretudo entre os mais jovens e pessoas de classes sociais mais desfavorecidas, que são os que mais têm aderido, é, na verdade, para os especialistas em cibersegurança, um autêntico pesadelo, pois os dados biométricos recolhidos podem facilmente vir a permitir a usurpação da identidade e a autenticação em dispositivos eletrónicos feita por terceiros.

A empresa garante que os dados são encriptados de forma totalmente segura e que não os vende a ninguém. Mas quem nos pode garantir que assim será? Qual o modelo de negócio desta empresa a quem cedemos dados a que, na verdade, só os serviços oficiais do Estado que emitem os documentos pessoais de identificação, mormente o Instituto dos Registos e do Notariado, deviam – eventualmente – poder aceder? E quem nos garante que, propositadamente ou por erro humano, que é a principal causa da violação de dados pessoais, esses mesmos dados não virão a ser usados de forma ilegal para acesso indevido a serviços digitais ou até a contas bancárias, por exemplo?

A transparência, a segurança e a privacidade estão entre os valores humanos fundamentais que têm de ser respeitados no desenvolvimento e uso das tecnologias. Mas, como afirma o Santo Padre na Mensagem para o LVIII Dia Mundial das Comunicações Sociais que se irá celebrar a 12 de maio de 2024, «a regulamentação não é suficiente […] cabe a nós questionar-nos sobre o progresso teórico e a utilização prática destes novos instrumentos de comunicação e conhecimento.»

O Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD) regula a proteção de dados mas, se os próprios cidadãos decidirem livremente ceder os seus dados pessoais a esta ou a outras empresas, não haverá muito a fazer de ponto de vista legal, a não ser que as entidades reguladoras entendam que o consentimento dos cidadãos não é verdadeiramente informado, tal como aconteceu no passado dia 6 de março em Espanha, e como eu espero que venha a acontecer rapidamente em Portugal. Seja como for, mesmo que não haja ilegalidade, há certamente aliciamento, o que é no mínimo ética e moralmente reprovável.

A dúvida lançada sobre as atividades desta empresa já terão valido a pena se nos ajudaram a reconhecer que a nossa presença no mundo digital tem de ser mais informada.

Mas oxalá que este seja apenas o despertar para um problema muito mais vasto, e que diz respeito à recolha sistemática de dados por sistemas operativos, aplicações no telemóvel e web browsers (inclusive em algumas páginas na Internet de instituições católicas, paróquias e dioceses), num discreto mas constante atropelo a direitos humanos fundamentais como a segurança e a privacidade.

Confesso que sonho com o dia em que jornadas paroquiais, diocesanas ou nacionais de comunicação social deem lugar não apenas à forma e aos conteúdos mas também à reflexão sobre a moralidade dos canais utilizados.

E é por isso que faço minha a oração do Sumo Pontífice na mensagem do passado dia 1 de janeiro supra-citada:

«Possam os fiéis cristãos, os crentes das várias religiões e os homens e mulheres de boa vontade colaborar harmoniosamente para aproveitar as oportunidades e enfrentar os desafios colocados pela revolução digital, e entregar às gerações futuras um mundo mais solidário, justo e pacífico.»

 

* O autor é sacerdote franciscano capuchinho e, desde há anos, procura refletir acerca das implicações éticas das novas tecnologias e empenhar-se na defesa dos direitos no meio digital.