Comunicação de D. Nuno Almeida na 3.ª edição dos "Encontros Improváveis" | Diocese Bragança-Miranda
“ENCONTROS IMPROVÁVEIS”
Alfandega da Fé, 18.07.2023, 21.00h
A fé e o sentido da vida
A fé, oferecendo sentido e direção à vida, não resolve magicamente os problemas. Ajuda-nos, pelo contrário, a reconhecê-los e a colocá-los na perspetiva autêntica, desafiando-nos a fazer escolhas corajosas, frequentemente contra a corrente, que levam à descoberta do significado profundo daquilo que parece, à primeira vista, absurdo.
Não devemos ocultar ou silenciar aspetos da vida que pareçam inconvenientes. Há que olhar a realidade, não para mergulharmos na depressão, mas para que em nós se robusteça a vida e a esperança. Tendo sempre presente o que acabámos de afirmar, partimos da convicção de que o infinito sentido da vida compreende também o sofrimento e a agonia, as privações e a morte.
Pensemos em Jesus condenado à morte ((Mc 15.6-15; Lc 23.13-25; Jo 18.39–19.16). Ele apresenta-se forte, não porque chama um exército de anjos em sua defesa, mas porque reafirma a vontade de doar a sua vida, amando até ao fim. Torna-se assim senhor da morte, Ele, o senhor da vida, porque subtrai ao tirano o direito da última palavra, pronunciando-a Ele, forte e decisiva, como gesto de amor.
É o amor que pode ajudar cada um de nós a tornar-se sempre mais senhor da própria vida. Mas somos senhores da nossa vida, só quando conseguimos buscar e encontrar o seu sentido, sobretudo quando enfrentamos eventos trágicos que podem fazer-nos mergulhar no absurdo. Recordemos, por exemplo, a reconhecida “tríade trágica da vida”: culpa, sofrimento e morte.
Poderemos encontrar mais facilmente um significado para a nossa existência quando, com toda a criatividade, conseguimos arrancar espaços à culpa, à desventura e à doença, embora, quando esta tríade trágica parece impor-se, podemos ser tentados a perceber a nossa própria existência privada de significado. Podemos incluir esta tríade nas denominadas, pelo Papa Francisco, de “periferias existências” (cf. EG 1-10). Há, então, que fazer uso de todos os recursos para podermos resgatar os elementos positivos que estão presentes também no trágico, porque podemos desejar o bem mesmo quando se apresenta como desafio ou tentação e exercitarmos a nossa capacidade de sofrer, porque o sofrimento só nos desumaniza se renunciamos ao nosso ser consciente, livre e responsável.
Para que a vida pessoal e coletiva tenha sentido há que deixar, portanto, expressar-se e desenvolver a nossa capacidade de entrega, saindo de nós mesmos e autotranscendermo-nos, num projeto de vida. Vida orientada para algo ou para alguém (Alguém). Superar sempre uma existência centrada (ocupada e preocupada) em si mesma, orientando-se para Deus, para os outros e para o mundo.
A luz do sentido ocupa, em nós, o espaço que lhe dermos, dependendo da ousadia que tivermos de nos esvaziarmos, superando os medos que nos impeçam de aceitar a experiência de despojamento. Esta dimensão de oblatividade amorosa permite encontrar o sentido, sempre e a “apesar de tudo”, mesmo nas situações mais duras e surpreendentes da vida.
O homem e a mulher, pela sua dimensão espiritual, podem distanciar-se tanto de disposições internas como de posições externas. Por isso, o ser humano é um ser essencialmente livre, podendo decidir livremente sobre a sua vida, graças a uma capacidade não possuída por nenhum outro ser, uma faculdade especificamente humana: o auto-distanciamento, ou seja, capacidade que o ser humano tem de distanciar-se não só do mundo, mas também de si mesmo. O importante não é a nossa disposição nem a nossa situação exterior, mas sim a atitude que se adota, a qual é sempre escolhida livremente por cada um de nós.
As circunstâncias biológicas, psicológicas, sociais podem condicionar, mas não determinar o desenvolvimento da existência humana. O ser humano como ser espiritual distancia-se, pode tomar posição com uma experiência de liberdade que não é absoluta, nem pode confundir-se com omnipotência. Por exemplo, a experiência de uma doença grave condiciona irreversivelmente a vida. Mas a atitude perante esta doença não está condicionada: deixar-se vencer pelo desespero, ficar apegado a capacidades que se vão perdendo, recordar nostalgicamente os tempos passados mais felizes, ou buscar alternativas, reconhecer as possibilidades que restam, ou ainda, simplesmente, enfrentar e oferecer de maneira digna o sofrimento. Pela dimensão noética do ser humano e pela luz da fé, o adoecer é uma experiência que não se esgota no processo da enfermidade; é, primordialmente, sofrimento e resposta do homem nesse processo e perante ele.
É na ativação da vontade de sentido que retira força a luta pela existência e o desafio de salvar para sempre no passado quanto foi escolhido consciente e responsavelmente no dia a dia. Assim, o resgate da precariedade e da transitoriedade do tempo ajuda a identificar os deveres e interrogações que a vida coloca para serem realizados e respondidos com tenacidade e perseverança. Para que tudo isto aconteça, há que recordar sempre as palavras, talvez as mais originais, de Viktor Frankl: “Transcender-se significa estar sempre voltado para algo, para alguém, oferecer-se e dedicar-se plenamente a um trabalho, a uma pessoa amada, a um amigo, ou a Deus que se quer amar e servir” (V. Frankl, Ärztliche Seelsorge, Wien, Franz Deuticke, 1982, p. 33).
Somos senhores da nossa vida se somos capazes de a colocar dentro de um projeto maior que inclui também o futuro da nossa existência: conseguimos reencontrar razões para a alegria também perante a dor e a morte, descobrimos que somos plenamente nós mesmos só quando nos dispomos a morrer como o grão de trigo (cf. Jo 12, 20-33), para que todos tenham a alegria de recolher o pão crescido no terreno do nosso pequeno e humilde serviço.
Viver a fé é sempre arriscar e implica despojamento. Uma leitura de fé da realidade passa pela coragem de abandonar a própria presunção no abraço imprevisível de Deus. Em cada gesto da nossa vida encontramo-nos perante uma alternativa muito séria: compreender as coias só à luz daquilo que conseguimos decifrar, no exercício sapiente da nossa busca; ou reconhecer que a sua verdade é mais profunda e mais íntima, provém do mistério de uma presença que pressentimos e confessamos num jogo apaixonado de fantasia, de risco calculado, de experiência de amor.
O cristão acolhe o mistério como fundamento da sua existência. Na fé escolhe confiar-se totalmente a Deus, mesmo quando, porventura, surja a suspeita dolorosa de que à sua espera, em vez de braços acolhedores, estarão somente rochas nuas e frias.
Viver na fé não é, portanto, aceitar alguma coisa, mas aceitar Alguém, renunciar a habitarmos em nós mesmos, para nos deixarmos habitar por Deus.
Não retenhamos, nem escondamos a luz da fé, na sombra dos nossos espaços individuais. Tomemos sempre a decisão de sair da nossa zona de conforto, sair de nós mesmos. Saiamos, pois, por toda a parte, para dar sabor e rumo e curar a vida triste e ferida de tantas pessoas. Saiamos, iluminados pelo Evangelho, para que nenhuma periferia fique privada desta luz! Mais vale acender uma luz do que maldizer a escuridão!
+Nuno Almeida, bispo eleito de Bragança-Miranda
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Fotografia: Daniela Cordeiro